Abate Clandestino. Até Quando ?

Abate Clandestino. Até Quando ?
O Brasil possui situação privilegiada no cenário da bovinocultura, sendo detentor do maior rebanho comercial do mundo e ainda ocupando a posição de maior destaque internacional: maior exportador de carne bovina do mundo. Contudo, confrontando essa posição grandiosa, nos deparamos com um grave problema crônico, que vem se estendendo há décadas: o abate clandestino de bovinos. A clandestinidade é definida por duas condições básicas: a não fiscalização pelo serviço de inspeção sanitária e a sonegação fiscal, condições essas que muitas vezes ocorrem simultaneamente, ou seja, abate clandestino é aquele que ocorre sem nenhuma inspeção sanitária e sem pagamento de impostos.

Estima-se que aproximadamente 50% da carne bovina consumida no mercado nacional seja proveniente desse abate, sendo que a literatura apresenta números que variam de 45 até 60%. As principais causas do abate clandestino estão diretamente ligadas à disponibilidade local de grupos de animais (geralmente animais de descarte), sonegação de taxas e impostos, pequeno investimento em instalações e baixo custo operacional, deficiência no sistema de fiscalização (número reduzido de profissionais – médicos-veterinários e técnicos), facilidade de colocação do produto no comércio varejista local, desinformação do consumidor, falta de punição aos infratores e ao poder sócio-econômico e político da cadeia da carne.

A conseqüência mais grave do abate clandestino é a exposição da população aos riscos de doenças, muitas delas graves, como a neurocisticercose, responsável pela morte de 50.000 pessoas por ano em todo o mundo, segundo dados da Organização Mundial de Saúde. Uma vez que os animais não são inspecionados, suas carcaças são destinadas diretamente ao aproveitamento e consumo humano, sendo que aí se encontra um dos ganhos do abate clandestino: carcaças que seriam descartadas ou condenadas por riscos sanitários são aproveitadas.

O controle oficial, sanitário e tecnológico dos produtos de origem animal no Brasil não é uma atividade nova: ele foi objeto de regulamentação, pela primeira vez, nos idos de 1915 e em 1950 a Lei 1.280 e o RIISPOA (Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal), que fixavam a obrigatoriedade do exercício da inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal, a cargo dos governos Federal, Estadual e Municipal. Ao governo federal cabia o comércio interestadual e internacional; ao governo estadual cabia o comércio intermunicipal e o comércio municipal cabia às prefeituras municipais. O Sistema de Inspeção Sanitária - que, por meio da Lei 5.760/71, esteve sob o total controle Federal - era caracterizado como um sistema burocrático, porém até certo ponto eficiente. Quando da elaboração da Lei 7.889/89, em 1989, o sistema foi desmembrado em três níveis de atuação, o que implicou a transferência do controle para outras esferas de poder e, por conseqüência, alterou sua confiabilidade. Assim, o Sistema de Inspeção Federal (SIF) foi mantido para a fiscalização de carnes comercializadas em todo o território nacional e aquelas destinadas à exportação, sendo criado o Sistema de Inspeção Estadual, priorizando a comercialização de carnes no âmbito Estadual, e o Sistema Municipal (SIM), que autoriza o controle da inspeção sanitária por parte dos municípios.

O sistema de inspeção Estadual está mais vinculado a abatedouros de menor porte, principalmente devido à menor burocracia e custos de manutenção quando comparado com o SIF. Com relação ao sistema de inspeção Municipal (SIM), este é diretamente condicionado às práticas políticas locais, sendo portanto difícil uma conclusão precisa em termos de sua atuação na fiscalização de carnes. Entretanto, essas três esferas de inspeção atuam com diferentes níveis de exigência quanto aos critérios higiênico-sanitários adotados, de maneira que os estabelecimentos sob inspeção municipal tendem a ter estreita relação com abate clandestino. De outro lado, a fiscalização, mesmo que deficiente, ocorre em frigoríficos registrados.

Parte relevante do fluxo da carne clandestina percorre um caminho absolutamente distinto, iniciando-se em um ponto de abate não registrado ('frigomato'), passando diretamente aos açougues, em especial nos bairros mais pobres. A vigilância sanitária, por sua vez, que seria responsável pela fiscalização da carne já no ponto de venda, não é capaz de avaliar problemas que levariam à condenação da carcaça no momento do abate. Os bovinos estão sujeitos a uma série de patologias, muitas delas graves, e em grande número transmissíveis ao homem pela ingestão ou manuseio das carnes e de outras partes do animal, as chamadas zoonoses, que são em número superior a 150.

Doenças e afecções, apenas para citar as mais comuns, como a cisticercose e a tuberculose, carnes tóxicas e repugnantes, carnes responsáveis por toxiinfecções alimentares, bem como diversas outras comumente encontradas na rotina da inspeção sanitária dos estabelecimentos de abate brasileiros, sob Inspeção Federal, respondem pelas consideráveis rejeições de animais abatidos na referida inspeção. Tais doenças só podem ser devidamente identificadas mediante a inspeção ante mortem e post mortem às quais os animais são submetidos no matadouro. A inspeção ante mortem ocorre na chegada dos animais ao estabelecimento e imediatamente antes do abate.

Já a inspeção post mortem é aquela que ocorre no decorrer das operações do abate do animal na sala de matança, quando são minuciosamente examinadas e inspecionadas víscera por víscera, órgão por órgão e carcaça por carcaça. Apenas diante dos resultados constatados nesses exames, realizados por equipes especializadas de médicos-veterinários e auxiliares técnicos oficiais, é que se tem a oportunidade, por meio de sinais ditos patognomônicos e lesões ou achados, de estabelecer-se um diagnóstico preciso e julgamento adequado de cada caso, dando-lhe o devido destino (descarte, aproveitamento para consumo humano, aproveitamento para fins não comestíveis, etc.).

Quando esses exames não são realizados durante o processamento industrial da carne, como nos casos de abate clandestino, muitas daquelas doenças e afecções podem chegar até o consumidor, sem oferecer sequer alguma suspeita de anormalidade. Os custos derivados do abate clandestino ultrapassam o não recolhimento de impostos e concorrência predatória sobre as empresas que operam legalmente, se refletindo em custos diretos aos sistemas de saúde e indiretos à capacidade de trabalho. A redução tributária enfrenta um limite claro dado pela característica do produto.

A informalidade representa não somente um ganho fiscal, mas sobretudo um ganho derivado do aproveitamento de carcaças que seriam descartadas por riscos sanitários ou falta de padrão. Portanto, mesmo que haja isenção de impostos, ainda assim a informalidade da carne bovina proporciona ganhos. Para coordenar-se de modo eficiente, o mercado informal assenta-se em estruturas de governança particulares, como a integração vertical entre abate e distribuição e a relação de confiança estabelecida entre açougueiro e consumidor. Finalmente, cabe dizer que a informalidade não é um fenômeno de causa única, mas é o resultado da conjunção de diversos elementos do ambiente institucional e competitivo, que se somam ao conferir maiores vantagens ao abate clandestino.

A elevada sensibilidade em relação a preços nos estratos de renda inferior, assim como o amparo de costumes e tradições ao comércio informal de carne, constituem fortes fundamentos para a continuidade do abate clandestino. Políticas públicas voltadas à redução dos custos derivados da clandestinidade - como arrecadação fiscal e segurança do alimento - devem, portanto, contemplar esses elementos para que haja uma redução mais efetiva do abate clandestino.

Principais Referências
FURQUIM A. Na clandestinidade: o mercado informal de carne bovina. In: www.fearp.usp.br/egna/resumos/azevedofurquim.pdf REIS, D. O., ALMEIDA, L. P., PIMENTA, A., VIEIRA, R. L. Zoonoses reemergentes: um estudo com bovinos abatidos em frigorífico da região Sudeste do Brasil. Revista Higiene Alimenta, v. 15, n. 82, p. 23-26,2001 REIS, D. O., ALVES, F., COELHO, H. E. Importância do exame histopatológico para diagnóstico pós morte de bovinos abatidos em frigorífico de Uberlândia, MG, 1987-1997. Revista Higiene Alimentar, v.11, n. 78-79, p. 23-27, 2000.



Publicado em 22/03/2004 por Lara Macedo Bonfim, médica veterinária, professora do curso de veterinária da PUC - Betim em http://www.rehagro.com.br/siterehagro/publicacao.do?cdnoticia=523

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pelo seu comentário, espero te-lo ajudado!
Abraço, Roselaine Mezz